Em frente à frente Argentina
Vou fazer um exercício de memória e falar um pouco sobre a concepção e montagem da nossa peça "Em frente à frente Argentina".
Em agosto de 2009, após conversar com a professora Alai Garcia Diniz, recebi dela o texto (em espanhol - ao lado) Frente al Frente Argentino com a sugestão de lê-lo e pensar em montá-lo. Era 18h do dia 17/08/2009.
Confesso que li naquela mesma noite esse conto do paraguaio até então desconhecido (para mim) Augusto Roa Bastos.
Me pareceu a princípio um texto teatralizável por ser dialético, isto é, construído na forma de diálogo, intertextual e fictício entre dois personagens reais: Cándido López e Bartolomé Mitre.
A partir daí começou um processo irreversível e profundo de aprendizado e envolvimento de outras pessoas. Um grupo de artistas de absoluta competência foram convidados e de pronto aceitaram fazer parte do processo, foram eles: Gustavo Bieberbach, Ricardo Goulart e Ilze Körting. De início, eu e Ilze começamos a adaptar o conto para o teatro, e de maneira até um pouco desorientada. O critério era quase simplório: dividir as falas pelos seus respectivos locutores e cortar àquelas que nos parecessem pouco musicais e sem nexo. Duas semanas depois e quase perto de começar os ensaios, alertados pelo Gustavo, percebemos que os cortes estavam seguindo uma lógica burra e desprezando a maior riqueza da peça, sua intertextualidade.
Antes de seguir é preciso explicar que o texto é entrecortado por trechos da Divina Commedia, de Dante Alighieri, que estaria sendo traduzida por Mitre.
Haviamos, até aquele momento, cortado todas as partes do inferno de Dante, simplesmente por não tê-lo lido. Até que o Gustavo alertou: "será que vocês não estão cortando o principal?"
Fui pra casa com aquilo na cabeça, comprei a Divina Commédia e me pus a lê-la. Foi um choque perceber que aquela era a principal parte da peça, aquilo que realmente era o que dava ao texto original seu aspecto teatral: sua metáfora! A metáfora de que a Guerra do Paraguai era o Inferno de Dante. Brilhante! Aí começamos a entender a mente do Roa. A partir daí, mais um aprendizado: Quem disse que basta haver diálogo para que haja teatro? A poética teatral não se basearia nos mesmos fundamentos/elementos da poética literária, resguardadas as devidas proporções de que no primeiro as figuras de linguagem (metáfora, metonímia, paradoxo, ironia, etc) compõem imagens/cenas e na segunda, frases? Ou seja, não basta ter diálogos, nem precisa ter, na verdade, mas se tiver capacidade de metaforizar, ironizar, criar imagens, paradoxos ironias, ser "multimidiático", aí sim, temos um texto potencialmente dramatúrgico, e era com o que haviamos nos deparado. Além disso, como transpor para a cena a intertextualidade (cruzamento de textos externos ao conto, mas que eram por ele absorvidos)? Foi aí que tivemos a idéia de intermidializar a peça, provocar um cruzamento entre mídias: corpo humano (ator), efeitos especiais e tecnológicos. A peça estava fundamentada e encaminhada. O resto pareceu o fluxo de um rio, em que bastava seguir a correnteza e cuidar para não nos espatifarmos nas pedras/margens.
De Apresentação - Em frente à frente Argentina |
Pois bem, o trabalho de adaptação recomeçou quase que do princípio, e o texto nos reabriu para as metáforas. Incluimos mais 3 personagens, metafóricas, as 3 fúrias do Inferno de Dante. E a peça passou de uma simples troca de diálogos para 12 cantos da Divina Tragédia de Augusto Roa Bastos, pois ela não termina bem, como a de Dante.
Bárbara Danielli, Daniela Antunes e Ilze Körting fora as Fúrias, cuja concepção baseava-se na nossa compreensão do que aqueles seres eram: mitos! E como tais, não eram boas nem más, tinham sido criadas para o que faziam. Eram como cobras, que não são boas nem más, apenas são aquilo para o qual foram "feitas". Em cima disso, evitamos quaisquer psicologização das mesmas e passamos à busca de um trabalho corporal intenso.
De Apresentação - Em frente à frente Argentina |
Por outro lado, López e Mitre foram criados iguais, carecas, semelhantes, quase num espelho, frente à frente. E por falar em frente à frente, o palco foi transformado na frente de guerra Argentina, quem estava em frente à frente de guerra argentina? O público. Eis os pilares da peça.
A estréia ocorreu em 8/10/2009.
Em 3/9/2010 foi apresentada novamente em Campo Grande/MS com novo elenco, João Gabriel David e Tainá Orsi passaram a integrar o elenco das Fúrias juntamente com a Bárbara Danielli, e Andreh Sampaio completou o corpo de direção comigo. O Andreh atuou de forma excepcional buscando um corpo mais ativo, presente e institinvo nas fúrias. Eu tive mais tempo para ajustes finos, trabalhos de voz, movimentação e até reflexão sobre os personagens.
De Apresentação - Em frente à frente Argentina |
O João conferiu uma androgenia fantástica à sua personagem (Megera), a Tainá tem uma força gaúcha que imprimiu à sua Fúria (Tisífone) um ar guerreiro e a Bárbara jogou todo o seu poder de sedução na Alécto.
Menos de um mês depois apresentamos na Semana ousada de artes.
O processo foi extremamente rico, e a partir dele começamos a verificar a existência de uma certa cultura que fica ao nosso lado a qual não somos exatamente integrados: a da América Latina!
Essa foi a grande semente da Cia. Teatro L.A. CHAMA!
Quem acha que o fundador do grupo somos: Bárbara, Gustavo, Ricardo, Tainá, Andreh, Rafa, Eu, etc... engana-se, a fundadora da nossa Cia. é a peça "Em frente à frente Argentina".
O download do texto traduzido por Eric Napomuceno pode ser feito aqui.
Recomendo que vejam os álbuns de apresentação dessa peça no IV simpósio Internacional Roa Bastos e da Semana Ousada de Artes.
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