quarta-feira, 6 de abril de 2011

DIÁRIO DE DIREÇÃO - "Ignácio & Maria"

Peça: "Ignácio & Maria"
Autor: Nara Mansur
Elenco: Priscila Souza e Ricardo Goulart
Data: 04/04/2011
Início: 14h05min

Muito bom ensaio, mas o melhor lugar para se olhar o céu é do topo da montanha! Portanto, vamos continuar subindo, sem acomodarmo-nos!


Vamos às impressões deste dia:
Começamos conversando sobre o texto, por intervenção da Priscila. Ela começou a apresentar algumas idéias relativas ao texto, as quais achei excelentes. Não apresentarei as idéias aqui, mas para dar-lhes uma idéia, as soluções dela   simplesmente deram uma cara a peça. Isso porque esta peça é, honestamente falando, muito difícil, a começar por suas linhas serem puro poema. Vejam o exemplo das falas abaixo:
(...)

IGNÁCIO : O mundo resplandece se sorries comendo uma laranja.

MARIA    : As laranjas existirão para que ele me veja comê-las. Limparei a casa, para quando me visitar. Mudarei as datas dos jornais e almanaques.

IGNÁCIO : O século se acaba, o milênio se acaba. O século começa. O milênio começa. Adiantarei os computadores, mudarei para que o último dia não seja 31 de dezembro, mudarei as marcas dos carros, falsearei minha voz e meu corpo para ser todos os amantes que Maria precisa.
MARIA    : Quero amanhecer ensimesmada, nervosa, sem fome, com todos os homens que amei e amo perto da minha cama; esperando o sinal para saber quem é o meu eleito, qual deles coará o café e arrumará a cafeteira; quem fechará a presilha do meu sutiã.
(...)

Como se comportar diante de um texto assim? É um ótimo começo, acho que Lehmann deu algumas pistas no seu Teatro Pós-dramático, quando eleva os demais elementos constitutivos da peça ao mesmo patamar de importância do texto, e chama tudo isso de parataxe. Isto é, talvez seja importante encarar o texto nesse caso, não como a camada semântica, de significação, mais importante. Daí, buscamos construir imagens, movimentos, sons e expressões "inspirados" pelo texto. 
Fundamentada, sem saber, em tudo isso, a Priscila trouxe soluções que suportam a parataxe e dialogam com os demais elementos da cena de igual pra igual. 
O Rick, aperfeiçoou algumas idéias, sugeriu outras tão boas quanto e assim, posso finalmente dizer algo que pelas minhas palavras à você, caro leitor, sei que propositadamente ainda não transparece, mas, temos uma peça em andamento. As cenas são menos obscuras e mais definidas, permitindo um ensaio mais direcionado.
Em seguida, fizemos uma leitura da cena 2, em velocidade crescente, para que os atores comecem a se acostumar com o texto, o qual ainda não pedi para que comecem a decorar. Fizemos alguns um exercício para melhorar a expressividade, isto é, partindo da leitura, onde o trabalho é essencialmente cerebral, partimos para o corpo para ver a diferença de se incluí-lo no jogo. Foram esses exercícios:
1. ambos estavam em lados opostos do espaço, e tinham que se tocar, girar e continuar sua rota, na direção de mudarem de lado, repetindo o procedimento em velocidades cada vez mais lentas.
2. cócegas, onde cada um ao seu tempo, deita no chão, e recebe cócegas do outro, podendo tudo, menos falar ou impedir a prática;
3. desconforto, onde cada qual ao seu tempo, de pé, pratica as coisas mais desagradáveis e desconfortáveis no parceiro, dentro de um tempo limíte, onde o jogo se encerra quando alguém gritar ou quando o tempo se esgotar. 
4. dor, onde cada qual ao seu tempo, de pé, provoca dor no parceiro.

Observações: sinto que ambos podem entregarem-se um pouco mais, isto é, ainda os vejo tímidos, sem dominarem a cena... faltam gritos, gargalhadas, gestos e atos expansivos; mas antes de "entregarem-se" falta se "abrirem", eles precisam expressar com mais frequência o que sentem, ou o que criam, isto é, se não sentem dor, mas estão criando a situação desta, isso precisa ficar claro em cores gritantes... espero estar sendo entendido. Bem, com relação ao exercício 2, 3, e 4, a Priscila levantou algo de muito interessante: que ambos não provocavam dor de verdade, ou desconforto... que "parecia ser de mentirinha". Algo expressivo para a reflexão.
Minha busca a partir de agora é no sentido de descobrir meios de fazê-los se abrirem ainda mais, e, portanto, expressarem-se cada vez com mais liberdade, sem o medo de estar parecendo "ridícula" que a Priscila tanto tem, ou o pesado auto-julgamento que o Ricardo emprega a si mesmo. Enfim, preciso criar jogos nos quais eles apenas vejam "que podem", para que "se acostumem" e passem a "empregar a experiência" apreendida, pois não posso criar um jogo por ensaio para eles se soltarem, precisam se acostumar futuramente com essa realidade que faz parte de fazer o ensaio render.
Por fim, pedi para que transformassem as fotos que trouxeram, buscadas e inspiradas na peça, e transformassem em esculturas humanas ligadas à alguma cena específica, à escolha deles. Depois de 7minutos, pedi para que se deitassem no chão, e, ao som de Il postino, sentissem o corpo. E levados por alguns convites que os fazia, pedi para que começassem a ativar parte por parte, até que em determidado momento, ambos estavam dançando, e ao meu pedido, a dança os levou para a posição das esculturas que criaram, como que dando dinâmica as figuras estática iniciais. Me pareceu que ambos entregaram-se nesse exercício. Talvez o jogo e a sensorialidade da música/dança sejam bons caminhos, ambos estão ligados com o corpo, é nele que quero chegar, para ver a visceralidade e organicidade tanto do Ricardo quanto da Priscila.



A tarefa para casa era para que trouxessem elementos os quais pudem incluir nos exercícios de desconforto, cócegas e dor. Estes exercícios são muito próprios quando se busca preparar os atores para se auto-estimularem na cena, e por falar nisso, gosto muito dos estímulos da Priscila sobre o Ricardo, essa frase dá a impressão de que a atitude dela é bom só para ela, quando o conjunto da obra que é ótimo, pois quando ela o estimula, seja por um tapa ou pegando no pênis dele, como ela fez, ele reage, e tão verdadeiros ou corajosos quanto esses estímulos é a reação dele, profundamente espontânea, ou seja: orgânica. Parabéns pros dois, espero que cresçam nessa direção. O jogo cresce quando crescem os estímulos (e reações a estes estímulos) vindos de ambas as partes.


Com relação à estas reflexões/observações, não me levem ao pé da letra... só o quão a sério for necessário para se construir algo bom.

Postarei fotos deste ensaio no fim de semana.

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