terça-feira, 19 de abril de 2011

DIÁRIO DE DIREÇÃO - "Ignácio & Maria"

Peça: "Ignácio & Maria"
Autor: Nara Mansur
Elenco: Priscila Souza e Ricardo Goulart
Data: 18/04/2011
Início: 14h10min


No ensaio de hoje eu estava anormalmente "elétrico", e isso me tornou mais presente, isto é, mais participativo na criação deles... o que não sei se é bom, porque temo por acabar criando com eles, enquanto creio que nesse primeiro momento eles devem ter toda a liberdade criadora e sentir-se dessa forma.

Minha intenção hoje era criar uma relação que não me parecia suficientemente criada ainda: texto x artistas. Haja vista que nas semanas anteriores, trabalhamos com mais intensidade e atenção a relação entre os dois artistas, que não serão tratados como "personagens" e sim "portadores de discurso", pois não estamos buscando acentuar ou criar uma fábula a partir da peça, mas acentuar a performatividade que há na teatralidade imanente desse texto, dito dramático.

Pedi a princípio, que os atores não iniciassem os ensaios  (estudo da cena) buscando energias em mim ou no aquecimento, mas trazendo energia. É o princípio do estímulo e do melhor aproveitamento do tempo. Afinal, se chegarmos no estudo da cena com a preguiça que nos é peculiar, demora um tempo razoável para entrarmos numa vibração de criação e num estado de prontidão que nos permita render, e para uma peça que se ensaia uma vez por semana,  não podemos nos dar a esse luxo, razão pela qual, devemos vir aquecidos e preparados.

Esse alerta já foi levantado pela segunda vez, mas a partir do próximo ensaio não será mais dado e, sim aplicado.

Portanto, hoje fizemos um aquecimento mais para trabalhar a nossa atenção/concentração e ativar o corpo. Temo que os atores encarem o aquecimento como um processo de "esquecer o mundo lá fora" e "concentrarem-se num texto ou ação teatral".  Na realidade, o que mais me interessa não é a alienação do mundo que o ensaio possa provocar ou dar a entender à alguém, me interessa muitíssimo tudo o que eles trazem, desde a mágoa oriunda de uma briga ou situação particular à raiva que uma topada numa pedra minutos antes de se chegar no ensaio possa ter-lhes provocado. Tudo isso é material criador, é combustível deles. Se pensarmos o aquecimento como preparador do estado de prontidão e abertura para a criação, nada mais justo do que pedir que eles não esqueçam as contas à pagar, os encontros e desencontros que tiveram... e, ao contrário de esquecer, que canalizem para o corpo, para a expressividade e pro jogo, todo material emocional, energético e sensorial que lhes estiver "atacando" naquele momento.
No primeiro exercício, simplesmente precisavam caminha ativamente pelo espaço, procurando um ponto na parede e respondendo à 3 comandos dados por um cabo de vassouras no chão. 1 toque equivale a abaixar-se, tocar o chão e continuar, 2 toques, equivale a pular e seguir caminhando, 3 toques equivale a deitar-se e continuar caminhando. O exercício busca concentração e percepção do outro ao ponto de acharem um ritmo em comum, pulando, abaixando-se, e deitando-se em sincronia. Feito isto, partimos para o segundo exercício, continuar caminhando até um determinado ponto na parede e, ao alcança-lo, no fugaz momento de buscar outro, que deixassem o impulso para o novo movimento partir de outra parte do corpo que não mais os olhos, deixando com que reverberasse no corpo esta nova "lógica" start do movimento. Na continuação deste exercício, avisei que o impulso gerador do novo caminhar partiria aleatoriamente, sem mais precisar alcançar o ponto na parede... esse impulso seria agora aleatório, caótico e sem controle. Pedi apenas para usufruirem aquilo que seus corpos estavam lhes "ensinando" mostrando. E permitissem um tipo de movimentação pelo espaço que não fosse convencional e que explorasse os planos e, portanto, o próprio corpo. Me pareceram exaustos, pelo menos suaram muito.
Numa segunda etapa, pegamos o texto, cena 3 e pedi a eles que retirassem 4 ações implícitas ou explicitas e as transformassem em movimento. Cada qual seria conectada por uma transição criada por eles mesmos. Realizada a escolha, sugeri que caminhassem pelo palco até encontrar um local que lhes fosse confortável ou simpático, lá parassem e explorassem tais movimentos, repetindo-os a medida que completassem a sequência. Num primeiro estágio, deixei-os trabalhando em silêncio e com pouca luz, para que conectassem-se em com seus corpos, ampliando sua capacidade expressiva, ou pelo menos de fazer ecoar por aquelas "carcaças" a criação daquelas mentes. Depois, adicionei umas músicas, como elemento externo estimulante, e para ver como reagiriam, englobariam e se apropriariam dos elementos fornecidos pela música (melodia, ritmo, sentimentos ou emoções). Me pareceu que passaram a dar melhor acabamento aos movimentos (como numa dança), e conforme a música, a dar maior intensidade à determinadas emoções presentes ou não nos movimentos. Exemplo, num movimento de estapear, com uma música punk, a Priscila parecia mais expressiva, enquanto numa música mais romântica, certos movimentos do Ricardo ganhavam mais valor, e o contrário também acontecia, isto é, músicas que não "colaboravam" ou dialogavam com o movimento pareciam incomodá-los. Algo muito bom! Sinal de que são humanos, sentem, e buscam expressar tanto o que lhes é agradável quanto o contrário.

Depois pedi para conversarmos um pouco (na realidade sempre conversamos muito, mais para saber o que acham do que para avaliar o que pensam, menos ainda para dizer se estão certos ou errados). Colhi as impressões deles, e afirmaram o que escrevi acima. Na realidade não iniciei o exercício esperando isso, mas apenas esperando ver o que acontecia, afinal este é um processo criativo colaborativo e, não "indutivo", do contrário, estou induzindo ao resultado, e me importa o que eles traze dentro da sua espontaneidade, verdade e desejo.
Por último, pedi que buscassem outras 5 ações, agora na cena 4 e aplicassem tais movimentos um no outro, intercaladamente, isto é, o Ricardo começou manipulando o corpo da Priscila de modo que ela fizesse o primeiro movimento que ele criou, em seguida ela moldava os movimentos do Ricardo conforme o primeiro movimento que ela criou e assim por diante. As primeiras repetições eram aprendizagens e, portanto, truncadas, rígidas, sem ritmo e fluência, mas a medida que iam repetindo, corpoirificando e aprendendo os movimentos, começavam a fazê-los com mais liberdade. Quando chegaram nesse estágio, pedi para que o criador do movimento não mais manipulasse o outro, mas criasse apenas um movimento de comando que indicasse ao outro o que deveria fazer. Por fim, após outras tantas repetições, solicitei para que o criador dos movimentos fizesse os movimentos da cena 3 (que havia criado isoladamente) enquanto o parceiro estivesse executando os movimentos (oriundos da cena 4) que nele haviam sido "impressos".
Repetiram por mais de uma hora, passando pelo estágio do esgotamento mental, emocional e por fim, entrando numa espécie de ciclo meditativo do movimento em que ele brotava fluidamente e, onde os atores apenas usufuiam. 
Durante todo esse processo, deixei algumas músicas, e conforme iam ganhando fluência naquela linguagem, as músicas mais adequadas (me pareceu) foram umas composições próprias para a meditação. Confesso que nesse estágio eu estava todo arrepiado, numa espécie de gozo estético, admirando as evoluções dos dois. A leveza, a beleza, a graça, enfim, nem sei como adjetivar... era apenas delicioso vê-los.
No final, conversamos um pouco sobre essas etapas, sobre o texto que começa a querer nascer, e sobre um processo semelhante ao corpo para trabalhá-lo, isto é, da mesma forma que a repetição de movimentos descola o gesto da mente e o cola em qualquer canto subconsciente, o texto também precisa ser repetido ao ponto do esgotamento, da banalização para ser corpoirificado, ganhar a profundeza das carnes deles, e quem sabe, emergir futuramente numa erupção de novos significados e sensações.

Pedi para que decorassem toda a cena 2 e dei-lhes o próximo ensaio de folga para dedicarem-se a isto. Pedi que para cada fala, buscassem uma foto. A princípio, quero que eles sintetisem e apropriem-se desses signos (textuais e visuais), o que surgir a partir daí, é mais que lucro, é festa. 

É isso, por enquanto. Ah, olha que delícia:

<...>
IGNÁCIO : Todos os dias saio à rua com o mesmo plano que não cumpro, que não termino e me pergunto por quê?
MARIA : Por favor, não se vá.
IGNÁCIO : Não me vou.
MARIA : Abraça-me.
IGNÁCIO : Te abraço. 

MARIA : Perdoo todos os teus sonhos.
<...>


Agora me responda, cabe um personagem aqui? uma fábula? Não cabe... não, não... 

Orgástico!

P.S.: vejam as fotos do ensaio na coluna da direita.

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