sexta-feira, 5 de novembro de 2010

DIÁRIO DE DIREÇÃO - "Canción de cuna..."

Peça: "Canção de ninar para um anarquista"
Autor: Jorge Díaz
Elenco: Anna Lia Sant'anna e Tobias Nunnes.
Data: 04/11/2010
Início: 9h15min (atraso)

Relato:
Hoje fizemos um exercício do Grotowski proposto em "An Acrobat of the heart" de Stephen Wangh. Esse exercício é simples e consiste apenas em respeitar a vontade (consciente ou inconsciente) do corpo. Se processa da seguinte forma,
  1. cada indivíduo do grupo caminha pelo espaço reconhecendo-o, observando e apercebendo-se do que começa a sentir;
  2. após encontrar um espaço que lhe proporcione algum conforto, o ator pode fixar-se nele e começar o aquecimento que seu corpo pedir;
  3. após alguns minutos, todo o pensamento que lhe ocorrer deve ser balbuciado, e na ausência de pensamentos (quando o ator sente-se pressionado acaba "achando" que não está pensando nada) uma pergunta pode ser feita como motivação para disparar o pensamento;
  4. após alguns minutos, o ator deve ser instruido que a cada novo pensamento ele deve mudar sua forma de aquecimento, seu relacionamento com o próprio corpo deve modificar-se;
  5. o balbuciar os pensamentos deve servir como aquecimento vocal também, portanto os pensamento não imediatamente traduzíveis com palavras podem ser expressos por fonemas ou sons não necessariamente inteligíveis, o importante é "conectar corpo-mente".
  6. Por fim, os atores são estimulados à "canalizar" para o seu aquecimento tudo o que estiverem sentido (ex.: se está irritado, pode correr ou fazer algo que utilize esse "combustíve;, se está alegre, pode pular, e assim por diante, a filosofia é: use-se à seu favor e não, ignore o que está sentindo para "fingir" sentir algo alheio.)

Essa sequência de exercícios não capta a profunda observação do desenrolar das tarefas nos atores. Nesse elenco, os pensamentos ainda são balbuciados com uma certa timidez (falam pouco e baixo), por que? Apenas os atores para responder, posso apenas supor a presença justamente daquilo que este exercício tenta quebrar: auto-crítica, que é justamente aquela voz interna que diz "que ridículo", "não faça isso", "que bobagem" e por aí a fora. Por sinal, já disse aos atores que essa voz é minha maior inimiga, pois que ela os dirige e os censura sem que antes eu e eles pudessemos observar o que eles mesmo criaram espontaneamente.
Além de tudo isso, esse exercício trás com extrema simplicidade um profundo estímulo ao ator não ignorar seus pensamentos (utilizá-los no aquecimento), e respeitar uma vontade por vezes abafada de fazer ou sentir algo representado pelo espaço que ele escolheu (até porque ao longo do exercício o ator pode trocar de local se assim o desejar).
Esse exercício demora entre 20 a 30minutos e é um momento de descoberta dos atores, descoberta do que lhes passa pela mente ou constatação do quanto é bloqueado o canal mente-corpo / mente-boca.
Em seguida fizemos um exercício de construção de personagens. O jogo consiste no seguinte:
  1. todos somos o personagem X (colocamos no corpo ou materializamos no corpo o como achamos que tal personagem é/comporta-se), o mediador pergunta como o personagem X é, e alguém relata, os demais podem detalhar, mas todos têm que ir portando-se conforme os relatos expressos;
Começamos pelo Balbuena. O Tobias iniciou com uma descrição bastante cerebal, o que é compreensível para alguém que está estudando o texto com intensidade e começando a equilibrar esse processo de estudo (intelectual) com o estudo físico da materialização das cenas. Portanto, dele vinham descrições como "O Balbuena é um pouco tímido, esquizofrênico, etc", no que eu lhe indaguei: "como se põe isso no corpo?", ele por sua vez tentava, e todos o copiávamos ao nosso modo. Exploramos e estudamos alguns corpos: Balbuena correndo, alegre, triste, furioso, etc.
Na sequência, estudamos Rosaura dentro do mesmo modelo. Anna Lia apresentou uma descrição um pouco mais física, motivada talvez pela sua maior experiência com o texto o qual ela já vinha ensaiando desde agosto, ao contrário do Tobias que vem recompor o elenco. As definições da Rosaura transitaram pelas mesmas características buscadas no Balbuena, e os atores responderam muito bem, isto é, buscavam explorar. Contudo, ainda assim percebi gestos pequenos, ou seja, os atores pareciam ainda temerosos em tomar a sua kinosfera (espaço limitado pelas dimensões externas do próprio corpo). Portanto, propús um exercício de commedia dell'arte o qual planta os pés no chão e começa a ampliar os movimentos a partir de uma movimentação que começa ordenada e evolui quase ao frenesi, com braços, pernas e todo o corpo usando o máximo de espaço possível. Após o exercício voltamos à atividade de construção do personagem do começo e eles o refizeram agora com muito mais energia e explorando melhor o seu espaço.
Por fim, passamos ao estudo das cenas 3 e 4.


A cena 3 revela a primeira aproximação entre Rosaura e Balbuena, quando após um café oferecido por aquela, Balbuena se detém um pouco mais no espaço e começa a compartilhar com a moça informações pessoais sobre seu avô e suas origens anarquistas, Rosaura, por sua vez, apresenta os conflitos familiares do início de sua vida. Na cena 4 vemos Rosaura interessada na vida amorosa de Balbuena no que é amplamente ingnorada nos seus intentos por respostas por vezes absurdas.
A princípio, por alguma razão que ainda não identifiquei (falta de estudo ou nervosismo compreensível à primeira pegada de texto) o Tobias não conseguiu completar a cena 3, no que eu parei o ensaio e substitui essa atividade por um jogo que o ajudaria a compreender a cena antes de decorá-la ou paralelamente à isso: eles teriam 5 minutos para montar uma "cena-resumo" da 3 e 4, composta pelas informações mais importantes que aquelas cenas continham.
Ambos fizeram e passamos as 1h30minutos seguintes repetindo essas cenas com comentários desse estudo.


Particularmente considero que hoje foi um péssimo ensaio porque falei mais do que o normal, e quando isso ocorre, o ensaio vira uma aula e não uma descoberta a partir de um jogo. Minha conclusão é que faltou de minha parte a criação de algum jogo ou trazer algum elemento intercessor ou provocador que possa fazê-los brincar, trazer soluções criativas e até mesmo incorporá-las em seguida à cena.
Hoje, portanto, houve um estudo das cenas e exercícios de construção de personagens, mas não foi-lhes oferecido nenhuma tecnologia provocadora diferente dos dias anteriores.
Do lado deles, avalio uma participação atenciosa, dedicada e muito envolvida nos exercícios. Apesar dos pesares, gosto da idéia de transitar pelos medos deles, e o maior medo ainda é o banal medo de parecer ridículos. Tenho pedido para que façam os seus estudos de cena da forma mais ridícula possível, para irem quebrando esse tabu censurador tão prejudicial ao processo criativo.

Cabe lembrar que o Tobias e a Anna Lia têm uma química fantástica, ambos tem uma presença cênica natural muito interessante, isto é, despertam interesse e parecem a vontade no palco, o Tobias em particular começou na peça a 2 semanas mas já trás uma compreensão intelectual do texto bastante avançada e explora/tenta novos caminhos sem resistências, o que é muito bom. Estou muito satisfeito com esse elenco, e muito insatisfeito com o que lhes propus hoje. Preciso estudar mais!

Ah, quero chamar a atenção ainda para as expressões dos atores que vocês poderão conferir nas fotos: notem que as do começo são menos intensas, e as do fim muito mais expressivas. O Tobias tem uma expressividade muito muito muito boa que acrescenta muito ao seu personagem e a Anna Lia também está com um corpo maravilhoso. Tudo aqui, em se tratando de corpo, é utilizado do ator em benefício dele mesmo, não espero nem proponho exercícios acrobáticos, muito menos lhes sugiro ginástica olímpica, desde a falta de alongamento ao "desengonçamento" são bem vindos, utilizáveis e eventualmente recicláveis. Parabéns aos dois atores que estão ótimos!


Abraços...
agora é hora de dormir, porque amanhã às 9h, teremos ensaio de "Ignácio&Maria" num lugar surpresa, mas onde há vários elementos intercessores!!! Aguardemos o que virá, eu não faço idéia nem quero fazer, vamos deixar o delicioso gosto da surpresa nos arrebatar. Beijos e boa noite.

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